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ARTE PARA A LITURGIA OU ARTE LITÚRGICA?
Por Pe Thiago Faccini
09/06/2020  15:00:28 - Atualizado: 09/06/2020  15:00:28

A arte litúrgica se configurou ao longo da história basicamente em três tipos: mistagógica/simbólica, alegórica e narrativa/descritiva.

A arte narrativa/descritiva nasceu como a Bíblia dos iletrados. Procurava narrar uma história mais ou menos completa de um dado ou personagem bíblico ou a vida de um santo, ou os milagres de um santo padroeiro etc. Esse tipo de arte, que encontramos especialmente figurada nos azulejos portugueses nas nossas igrejas dos séculos XVII-XVIII, se identifica muito com o período barroco. Era uma forma de prender os fiéis concentrados piedosamente dentro das igrejas enquanto o “único sacerdote” realizava “sozinho”, com o devido rigor das inúmeras rubricas­ ‒ certamente os escrupulosos o faziam por medo das penas canônicas que se incorriam ‒ o complicadíssimo culto, a baixa voz, em altares distantes do povo, separados por um longo transepto, fechado pela grade denominada “mesa da comunhão”, que limitava o espaço entre o corpo da igreja e o recinto sagrado, que, por causa de uma concepção misógina do sagrado, era inacessível às mulheres.

A arte alegórica caracterizou praticamente todos os séculos que antecederam o Barroco, situando-se mais ou menos depois dos séculos VIII e IX até à modernidade.

À mutação do método da lectio à questio, provocada pela perda do contato dos pensadores medievais com o método dos Padres da antiguidade, aderiu também a reflexão litúrgica, desenvolvendo, ou às vezes se contrapondo, às variadas correntes e disputas iniciadas no século IX. A coisificação do sacramento coisificou também a liturgia (1). A liturgia perdeu a sua categoria de teologia primeira não lhe sobrando nem mesmo a de locus teologicus (lugar teológico). À perda da compreensão simbólica da liturgia sucedeu o método alegórico que encontrou na escolástica o seu ponto culminante.

Ao lado da summa apareceu sempre mais a expositio de modo que a celebração dos sacramentos, já definitivamente separada do saber teológico dos sacramentos, agora ensinado e aprendido nas escolas, ganha sempre mais uma explicação de tipo sistemático (3). Se destacam nessa empresa: Odo de Cambrai († 1113); Bruno de Segni († 1123), autor do De sacramentis ecclesiae, mysteriis atque ecclesiasticis ritibus (4); Ruperto de Deutz († 1135), com sua obra dividida em 12 livros De divinis officiis (5); o teólogo parisiense João Beleth († 1165), cuja Summa de ecclesiasticis officiis (6) ao lado do Liber Officiis de Amalário e o Rationale de Guilherme Durando era parte integrante da trilogia clássica dos manuais litúrgicos medievais(7).

No século XIII, período áureo da Escolástica, se destacam Siccardo († 1215) que na sua obra Mitrale apresentou um longo comentário sobre a missa, constituindo, segundo Righetti, uma verdadeira summa litúrgica (8); o papa Inocêncio III († 1216), com sua vasta obra litúrgica e de modo particular com o De sacro Altaris Mystero (9) e Guilherme Durando († 1296) que levou o método alegórico ao nível do exagero com o seu Rationale divinorum officiorum, que se tornou o manual no tardo medievo e para além desse, cujo fim último era de desvelar secreta divinorum officiorum mystera(10) . Endereçada contra as interpretações alegóricas, deliramenta et hominum illiteratorum, foi a explicação da missa intitulada Opus de mysterio missae de Alberto Magno († 1280), voz que não teve sucesso (11).

Em uma palavra, a arte desse tempo tinha por fim dar sentido à celebração dos mistérios que tinha se tornado misteriosa, isto é envolvida numa nuvem de gestos, palavras, vestes e objetos incompreensíveis.

A arte mistagógica/simbólica, por sua vez, é a arte da Igreja primitiva que não tem por fim explicar ou explicitar o mistério, ou ser catequese preparatória ao mistério, mas nasce como concretização do mistério que se está celebrando (12). Está necessariamente ligada ao mistério de tal modo que só tem sentido, ou só adquire sentido, se, e em pari passu com a celebração litúrgica.

Esse tipo de arte nasce da meditação da Palavra de Deus proclamada na liturgia. Essa Palavra, ‒ que não é outra coisa senão a Palavra de Deus encarnada em Jesus de Nazaré ‒, opera a transformação no cristão e este a atualiza transformando-a em arte: oração, música, canto, pintura, arquitetura, dança, livro etc. Esse tipo de arte não está à serviço da liturgia, ela é liturgia em forma de arte.

 

Dom Jerônimo Pereira Silva, OSB

Doutor em Sagrada Liturgia.
Membro do Centro de Liturgia Dom Clemente Isnard.
Mosteiro de São Bento de Olinda, PE; Istituto di Liturgia Pastorale, Pádua, Itália.

 

(1) O processo de coisificação dos sacramentos terá início precisamente com a sua interpretação ilemorfica: identificando os elementos essenciais do sacramento com a matéria e a forma, o fato sacramental perderá a característica fundamental de «ação» e de «evento», para o qual o interesse da teologia e da própria catequese se moverá, do mistério e das pessoas envolvidas, às coisas com que o mistério é celebrado»: E. Ruffini, « Sacramenti », in DTI 3, ed. L. Pacomio, Marietti, Torino 1977, p. 188.

(2) Cf. Kunzler, Michael. La liturgia della chiesa. 2. ed. Milano: Jaca Book, 2003, p. 151.

(3) Brunonis Astensis. De sacramentis ecclesiae, mysteriis atque ecclesiasticis ritibus. Paris: ed. J.-P. Migne (PL 165), 1854, p. 1089-1110.

(4) Tuitiensis, Rupertus. Liber de divinis officiis, ed. H. Haacke (Corpus Christianorum Continuatio Mediaevalis, 7). Turnholti: Brepols, 1967.

(5) Belethus, Joannes. Rationale divinorum officiorum. Paris: ed. J.-P. Migne (PL 202) 1855, p. 13-166.

(6) Cf. Righetti, Mario. Storia Liturgica. I. Milano: Àncora, 1964, p. 84, nota 95.

(7) Cf. Righetti, Mario. Storia Liturgica, p. 85. A obra é formada por 9 livros. «Aqui a liturgia é vista como a vida da Igreja; encontram-se, portanto, declarações teológicas, conselhos ascéticos, referências jurídicas, bem como a descrição dos ritos. Coberto de razão está o cardeal Mai, com sua bela prosa latina, apresentando em 1839 uma primeira antologia de textos do Mitrale poderia falar de “fonte genuína da qual pode-se extrair informações valiosas sobre a origem, a ordem e a prática dos sagrados ofícios para cada dia do ano”»: Brocchieri, Ercole. L’opera letteraria di Sicardo vescovo di Cremona. Introduzione allo stato attuale delle ricerche. Cremona: Athenaeum Cremonense, 1958, p. 58-59.

(8) Innocenzo III. Il sacrosanto mistero dell’altare (De sacro altaris mysterio), Città del Vaticano: S. Fioramonti, LEV, 2002.

(9) Cf. Raffa, Vicenzo. Liturgia eucaristica, Mistagogia della messa: dalla storia e dalla teologia alla pastorale pratica. Roma: CLV-Ed. Liturgiche, 2003, p. 123-127; Cattaneo, Enrico. Il culto cristiano in occidente, note storiche. 3. ed.  Roma: CLV-Ed. Liturgiche, 2003, p. 240-242; Kunzler, Michael.  La liturgia della chiesa, p. 151-152; Jungmann, Josef. Missarum sollemnia. Origine, liturgia, storia e teologia della messa romana. I. Milano: Àncora, 2004, p. 152. Para os textos ver: Duranti, Guillelmus. Rationale divinorum officiorum, ed. A. Davril; T. M. Thibodeau; B.-G. Guyot (Corpus Christianorum Continuatio Mediaevalis 140-140 a-b). Turnholti: Brepols, 1995 – 1998 – 2000 (trad. it. Rationale divinorum officiorum liber I et III. Città del Vaticano: ed. G. F. Freguglia, LEV; Cad & Wellness, 2001). O Rationale consta de oito livros. No I trata da Igreja, do altar, da iconografia etc.; no II dos sagrados ministros; no III das sagradas vestes; no IV da missa, no V das Horas canônicas; no VI do Proprium temporis; no VII do Proprium sanctorum e no VIII do calendário astronômico, o modo de encontrar a data da páscoa etc. A ele devemos a primeira compilação de um pontifical, protótipo do nosso Pontificale Romanum. Cf. Le pontifical romain au moyen-âge, III: Le pontifical de Gulliaume Durand, (StT 88). Città del Vaticano: ed. M. Andrieu, BAV, 1940.

(10) Cf. Cattaneo, Enrico. Il culto cristiano in occidente, p. 244.

(11) Cf. Davies, John Gordon. The origin and development of early christian architecture. London: SCM, 1952; Grabar, André. L’arte paleocristiana (200-395). Milano: Feltrinelli, 1967; Crouan, Denis. L’art et la liturgie. Essai sur les rapports constants unissant l’art et le liturgie au cours des siècles. Paris: Tequi, 1988.

FONTE

 Artigo publicado no site: http://centrodeliturgia.com.br/arte-para-a-liturgia-ou-arte-liturgica/